25 outubro 2010

Baptista Bastos - As Bicicletas em Setembro

Inicia-se a obra com o tropel de dezenas, talvez centenas de cavalos que corriam à desfilada naquele vale imenso que se estendia por alguns quilómetros. «A norte», (regista o texto) «o vale despenhava-se abruptamente num talude.» Lá, ao longe, as serras divisavam-se a perder de vista.
Os cavalos corriam, bocas cheias de espuma, os olhos endoidecidos. Trovejava, relâmpagos riscavam o céu. Os cavalos pareciam enfurecidos e saltavam no meio da tempestade. «Saltaram tão alto que passaram as serras, mas caíram num terreno cheio de puas. Muitos deles rasgaram os ventres nos bicos afiados de piteiras antiquíssimas, tão antigas que estavam petrificadas. Os cavalos morreram todos.»

Jesuína, (personagem principal) comentava que o que mais a tinha impressionado era o modo como os cavalos relinchavam. «Parecia que se queixavam» E «essa mulher já velha e cheia de rugas contava aos garotos da rua histórias antigas».

Eles ouviam-na com atenção, sobretudo ele. «Ele tomava notas desse espaço inverificável e infinito. Ouvia-lhe as histórias e acreditava nelas, porque a mulher antiga não só tomava conta dele e dos outros como sabia de árvores (…) e conhecia os ventos, as luas, as correntes do Tejo e outras ruas.»

Assim reza o texto, instituindo-se, desde o começo, sob o signo memorialista, reforçado pela simbologia do cavalo, arquétipo da memória do mundo ou melhor, do tempo, pois está ligado aos grandes relógios naturais ou ainda à impetuosidade dos desejos.

A imagem dos cavalos apocalípticos, sem cavaleiros, correndo endoidecidos para a morte, sob uma terrível tempestade, faz antever, sob a forma de indício, a natureza dos acontecimentos que irão decorrer. Acontecimentos, cuja dramaticidade se joga entre os pequenos dramas do quotidiano, a perversidade dos homens, as invejas, a intromissão inoportuna e cruel na quietude dos outros e a morte que pode ser física, mas a mais trágica, a morte dos sentimentos, da confiança no ser humano, a morte destruição dos sonhos, a morte isolamento, a morte solidão.

Também as bicicletas são outro símbolo que aparece no imaginário moderno, evocando a necessidade normal de autonomia, como ainda o tempo que roda, tal como as nuvens pelos céus fora. O título da obra, «Bicicletas em Setembro» reporta-se a uma passagem inicial do livro:

«Algum dentre nós teria de escrever sobre esses corredores e essas portas incertas, as imensidões sem fundo do tempo em Setembro, que formavam círculos e pareciam rodas de bicicleta, quem me dera ir com elas, por esses céus fora, quem me dera.».

O narrador ergue-se entre um «nós», isto é, entre as várias personagens do texto que se entrelaçam com o seu «eu». Narrador que se identifica com o próprio autor e que relata as experiências vividas.

O discurso faz-se na 1ª pessoa e cada capítulo passa a funcionar como uma crónica, género de predilecção do autor, instituindo no romance uma forma peculiar de escrita nessa mistura de géneros, não deixando, porém, de obedecer às regras do romance na sua totalidade e unidade, como à construção das personagens e entrosamento entre elas, dentro dum microcosmos, meio citadino, meio rural, lugar de infância sonhado, reinventado.

Assim se narra que, em frente da casa onde fora viver, vivia um penhorista, homem afável, benevolento e calmo. Diziam que, anteriormente, fora informador da polícia secreta. As vizinhas iam a sua casa penhorar as jóias. Uma delas tinha um filho já adulto, que passava os dias, de manhã ao entardecer, sentado na guarita do antigo quartel. A mãe levava-lhe comida que ele comia sofregamente.

Este rapaz ia a todos os funerais que passavam pela rua do meio. São descritos os enterros, ora de ciganos, ora de militares, estes, com toda a pompa e circunstância.

Havia em tempos antigos, perto do cemitério, uma taberna, onde os acompanhantes dos funerais iam lá «beber, rir, jogar à sueca ou ao dominó e apalpar a viúva do proprietário galego.»

São episódios como estes, insólitos e imprevisíveis, que vão acontecendo, atestando a imaginação, a ironia, e o espírito de humor do autor.

Jesuína irá impor-se ao longo da obra pelo carácter frontal, com valores culturais e morais, nem sempre bem compreendidos e que nos inspira a mesma simpatia que é transmitida pelo autor. Inclusivamente, mesmo na expressão do seu erotismo, que nos poderá chocar, por ser testemunhada por crianças, ela terá o perdão dos seus pecados aos olhos do leitor mais avisado, pela dimensão humana e amor aos garotos da rua que ela protegia.

Jesuína «alugara a casa quando havia pinheiros na meseta onde hoje se erguiam três pesados e feios edifícios da administração pública.»

Entrara jovem naquele bairro, de uma beleza fulgurante. Enviuvara cedo e nunca mais quisera homem nenhum. Guardava até à velhice a mordacidade que lhe permitia falar forte e feio quando era necessário. Não tinha filhos, mas tomava conta dos filhos das costureiras, das mulheres da vida, ou das ciganas que não confiavam os filhos a mais ninguém. Às vezes eram treze ou catorze que se reuniam naquele velho casarão, com uma sala enorme e uma escada que dava para o quintal.

Jesuína recebia também as vizinhas com as quais compartilhava segredos, coscuvilhice e favores. Quando alguém a desfeiteava, ela insultava-a e terminava assim: «Só estou a pôr os pontos nos is.»

O dia que lhe dava maior prazer era a segunda-feira. Uma das vizinhas contava-lhe minuciosamente os filmes, os documentários, os desenhos animados que vira no dia anterior no Salão Portugal. Depois da narração dos filmes, ela tomava a palavra e contava as peripécias de um romance em fascículo ilustrado que recebia todas as semanas. O Amor de Perdição era aquele que lhe dava mais prazer e mais emoção de lhes ler. Gostava de palavras e de lhes descobrir os sentidos. Consultava o dicionário do Torrinha, fazia palavras cruzadas e apreciava também a leitura de jornais antigos que os guardava empilhados. Isso atestava os seus gostos literários e os valores culturais.

Jesuína ouvia os desabafos das vizinhas, das viúvas que falavam dos maridos sem qualquer emoção, saudade ou sentimento de perda. «Falam sem pudor de coisas íntimas», pensava ela. Toda esta forma de estar na vida traduzia o seu carácter de mulher forte, pelo menos aparentemente, com grande sentimento de humanidade, a sua inteligência e sensibilidade.

São-nos relatados episódios, por vezes chocantes, como, por exemplo, a morte violenta de um cigano de nome Aires, anunciada aos gritos pela calada da noite e comentada por Lauren Bacall (os garotos davam a si próprios nomes de artistas). «O Aires é um porco». Instada, ela confessou que, um dia, ele lhe dera uma boleia e, depois, apalpara-lhe os seios e metera-lhe as mãos pelas pernas acima. Mais tarde, Lauren anuncia que já sabia que quem matara o Aires à facada tinha sido um outro cigano, porque ele abusara da sua filha de catorze anos.

As histórias têm, assim, narradores internos como esta rapariguita, mas a narradora que se assume como personagem, e que é o eixo central das várias narrativas internas é Jesuína, articulada pela memória do autor/narrador autodiegético. E cito:

«Os olhos grandes de Jesuína estavam em toda a parte, escrevo agora. Olhos que nos vigiavam, nos protegiam dos perigos das ruas e das suas armadilhas, olhos muitos e vários. Ela parecia pressentir os riscos que nos ameaçavam e julgávamo-la omnipresente. Isto, muito antes de a má-língua lhe atribuir procedimentos indecorosos connosco.»

Alguém escrevera um artigo numa revista, difamando-a, arrastando, deste modo, todo o grupo para a infâmia. Deveria ser alguém do grupo, embora ele não descortinasse quem teria essa vocação para a escrita que só agora se revelara.

O narrador, que, à distância, a recordava com estima e compreensão, sentira necessidade de escrever algo, que recuperasse a imagem desta mulher que os amara.

Lembrava-se das noites de Inverno, em que ela se deitava junto dos rapazes, e aquecendo-lhes o corpo com o seu próprio corpo e acariciando-os, despertava neles a sensualidade.

Um dia, ela dissera: «Quem me dera sentir saudades de um amor que nunca tive». «Parecia uma frase sem propósito, mas, no entanto, a frase comportava em si um secreto sentido.», frisa o autor.

Jesuína não queria sentir-se culpada de nada. Recordava as palavras da cigana que lhe dizia que ela não tinha que se sentir culpada de nada. E pensava: «Quem sou eu para lhes dizer que não podem viver os seus sonhos? Ensinei-lhes o corpo para os ensinar a sonhar. Mas eu ignorava que o sonho não tem em conta a natureza humana.»

As histórias que se contavam dela na taberna eram avolumadas conforme a imaginação e o tamanho da maldade de cada um. As mulheres, mais perversas ainda, atiravam pedras às janelas de Jesuína. E os próprios rapazes, envergonhados com as histórias que contavam, deitavam excrementos à sua porta.

«A memória existe para atraiçoar os factos. E suprimimos aquilo de que não gostamos» - disse um deles.

E o narrador reflecte.«Com o andar dos anos eu aprendera que a memória é a base da identidade; e ela decidira suprimir a memória a fim de preservar a ocultação de quem era. Eu sou mais do que eu, não há nenhum caminho para a fuga.».

Assim, apesar de cada um deles ter procurado outros bairros, outros amigos, outras ruas, decerto transportariam para sempre as vivências do passado. O narrador, talvez mais tocado ainda por tudo aquilo que representara para ele a infância e, sobretudo Jesuína, afirma: «Ainda hoje estremeço quando revivo as cenas ocorridas com Jesuína, o seu corpo majestoso e albergante, a sua grandeza severa e irónica. Tê-la conhecida era como estar no interior de uma semente»

Era, portanto, o regresso à origem matricial, por isso, de vez em quando fazia uma visita ao seu bairro. E as lembranças vinham-lhe à mente. Vida e morte, amor e repulsa, hipocrisia e cobardia misturavam-se dolorosamente na sua memória. Imaginava Jesuína, cansada do desprezo dos outros, numa certa noite, a sair de casa envolta no xaile, esgueirando-se pela colina e atravessando o povoado até chegar ao outro lado da cidade. Caminhava, caminhava… «até se perder no interior de outras trevas espessas».

E apesar de já lá não existir, nem ela, nem a casa, ele conseguia vê-la, por detrás das cortinas, vigiando e observando as pessoas que por ali já não caminhavam.

Exuberante nas imagens, lírico na expressão dos afectos, Baptista Bastos, nesta sua obra mais recente, continua a afirmar-se como o romancista/cronista, com o seu traço inconfundível, de um dos mais notáveis escritores deste e de outros tempos


                       Elsa Rodrigues dos Santos

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