03 outubro 2010

Luis Ruffato sobre Fernando Pessoa




Luis Ruffato (antologiador)
Fernando Pessoa
Quando fui outro
(Prefácio de Inês Pedrosa)
2010  
    
    


 Luís Ruffato, romancista brasileiro, nascido em 1961, é autor, entre outros livros, Eles eram muitos cavalos, em 2001 e Estive em Lisboa e lembrei-me de ti.
É um apaixonado pela obra de Fernando Pessoa, daí ter organizado esta belíssima antologia tendo em vista que Fernando Pessoa não é só um poeta, mas igualmente um filósofo. Reúne, assim, uma selecção de poemas, ensaios, anotações e fragmentos de cartas de amor.
Inês Pedrosa, no seu notável prefácio, diz da obra: «Este Pessoa é único, uno, íntegro. Um vendaval de beleza e conhecimento - com menos contradições do que aquelas que nos habituámos a registar.
Por sua vez, Luís Ruffato na sua introdução diz deste grande poeta: «…cresceu em mim a convicção de que, mais que poeta, convivia com um grande ficcionista. Tão original que, a criar personagens em romances, preferiu dotá-los de nome, biografia, autonomia, personalidade - e chamou-os heterónimos.»
Luís Rufatto realça nesta antologia a grande preocupação de Pessoa, ou mais do que preocupação, a desesperada tentativa de compreender o homem na sua totalidade.
Reunindo poemas, fragmentos do «romance sem acção», O Livro do Desassossego, ensaios e cartas, ressalta nesta antologia a impressionante unidade temática da obra de Pessoa.


Abre a selecção com o célebre e longo poema de Álvaro de Campos, «A Tabacaria» de que citamos a 1ª estrofe:
«Não sou nada
Nunca serei nada
Não posso querer ser nada
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.»
A seguir, «Que espécie de Homem sou» do próprio Fernando Pessoa:
«É necessário agora que eu diga que espécie de homem sou. O meu nome, não importa, nem qualquer detalhe externo sobre mim. É acerca do meu carácter que algo deve ser dito.»
Neste texto, Fernando Pessoa realça as suas dúvidas, as suas hesitações. Citamos:
«Toda a constituição do meu espírito é feita de hesitação e de dúvida. Nada é ou pode ser positivo.». «Tudo para mim é incoerência e mudança. Tudo é mistério e tudo é significado».
«O meu carácter é tal que eu detesto o princípio e o fim das coisas, pois são pontos definidos.»
A seguir vem o «Poema em linha recta» de Álvaro de Campos, em que o poeta se confessa que tantas vezes foi vil e ridículo, mas não conhece ninguém que confessasse ter sido, pelo menos uma vez na vida, vil ou ridículo.
«Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
que confessasse não um pecado, mas uma infâmia
que contasse, não uma violência mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
(…)
Oh, príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses
Onde é que há gente no mundo?»
Segue-se o poema de Álvaro de Campos:
«Cruzou por mim, veio ter comigo na rua da Baixa
Aquele homem mal vestido, pedinte por profissão
(que se lhe vê na cara)
Que simpatiza comigo e eu simpatizo com ele;
E reciprocamente, num gesto largo, transbordante,
dei-lhe tudo o que tinha
Excepto, naturalmente, o que estava na algibeira
Onde trago mais dinheiro
(…)
Sim , eu sou também vadio e pedinte,
E sou-o também por minha culpa.
Ser vadio e pedinte não é ser vadio e pedinte.
(…) É ser isolado na alma, e isso é ser vadio
É ter (que) pedir aos dias que passem e nos deixem,
E isso é ser pedinte»
Em «Autopsicografia», Fernando Pessoa declara:
«O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.»
Este poema é a base de toda a sua problemática interior que é desenvolvida em todos os seus heterónimos, mas sobretudo em Bernardo Soares, no Livro do Desassossego:
«Toda a literatura consiste num esforço para tornar a vida real . Como todos sabem, ainda quando agem sem saber, a vida é absolutamente irreal na sua realidade directa: os campos, as cidades, as ideias são coisas absolutamente fictícias, filhas da nossa complexa sensação de nós mesmos. São intransmissíveis todas as impressões salvo se as tornarmos literárias.»
E, noutro fragmento, Bernardo Soares diz o seguinte:
«Tudo se me evapora. A minha vida inteira, as minhas recordações, a minha imaginação e o que continuamente sinto que fui outro, que senti outro, que pensei outro. Aquilo a que assisto é um espectáculo com outro cenário. E aquilo a que assisto sou eu,»
E termina este texto, interrogando-se:
«Meu Deus, a quem assisto?
Quanto sou? Quem é eu? O que é este intervalo que há entre mim e mim?»
Apesar deste aparente ou não desinteresse pela vida, o poeta que se assina Álvaro de Campos, no poema «Bicarbonato de Sódio» interroga-se e exclama:
«Devo tomar qualquer coisa ou suicidar-me?
Não: vou existir. Arre! Vou existir.
E-xis-tir
E-xis-tir…»
Álvaro de Campos, o engenheiro, o homem mais pragmático não quer cair em situações depressivas ao contrário do seu ortónimo ou de Bernardo Soares, mais próximo do pensamento.de Fernando Pessoa.
Ricardo Reis, o Dr. Ricardo Reis, médico , o homem culto, o classicista, o epicurista, que foge da dor e de tudo o que possa prendê-lo a preocupações, em tom de conselho, declara ao leitor:
«Segue o teu destino
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas
O resto é a sombra
De árvores alheias
(…)
Suave é viver só.
Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.»
Alberto Caeiro, o homem simples do campo, que só crê na força da natureza, numa atitude panteísta, confessa as suas crenças e descrenças no longo poema:
«Há metafísica bastante em não pensar em nada:»

«O mistério das coisas? Sei lá o que é o mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
(…)
Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me: Aqui estou!

Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e o sol e o luar
Então acredito nele
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.».
Luís Ruffato não se esqueceu de incluir as Cartas que Fernando Pessoa escreveu a Ophelinha, ou melhor a Ophélia Queiroz. Para introduzir este capítulo , o célebre poema de Álvaro de Campos:
«Todas as cartas de amor são ridículas»
À primeira vista e até pela forma como ele se dirige a Ophelinha (meu amorzinho, meu Bebé querido, meu bebezinho lindo, terrível bebé) pensaríamos que estas cartas são, de facto, ridículas, mas se as lermos atentamente chegaremos à conclusão que apesar da forma ternurenta, quase piegas, elas encerram, por vezes, uma grande angústia e ilustram bem as suas dúvidas, as suas incertezas. Por outro lado, reflectem o menino que esteve sempre dentro dele e a necessidade de carinho. Mas como um menino, ele é também volúvel e desestabilizador.
Bernardo Soares diz: «Nunca amamos alguém. Amamos tão somente a ideia que fazemos de alguém. É a um conceito nosso- em suma, é a nós mesmos- que amamos.
E Fernando Pessoa, no poema «A Outra» consubstancia esta ideia:
«Amamos sempre no que temos
o que não temos quando amamos
(…)
teus beijos são de mel de boca,
são os que sempre pensei dar,
e agora a minha boca toca
a boca que eu sonhei beijar
De quem é a boca?
Da Outra.»
É, assim, sobre esta fascinante figura, poeta maior da nossa literatura, que o escritor brasileiro Luís Ruffato nos propõe que lancemos um olhar mais profundo, dizendo:
«Pessoa nos convida a assumir a plenitude humana, que é enxergar para além, que é olhar dentro de nós mesmos. Humildemente , aceitemos o convite.»


                                     Elsa Rodrigues dos Santos

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