03 dezembro 2010

Manuel Tiago (pseudónimo de Álvaro Cunhal) - Até amanhã, Camaradas

Com o nome de Manuel Tiago foi publicado este livro Até amanhã, Camaradas. Era um nome completamente desconhecido, não identificado. Aliás, o livro abre com uma nota sobre este misterioso autor:
“O original dactilografado do romance, Até amanhã, Camaradas, foi encontrado junto de outros originais, num arquivo formado, no decurso dos anos, ao sabor dos incidentes e de acidentes, na vida agitada daqueles mesmos dos quais o romance dá alguns exemplos típicos.
Desconhece-se quem é o autor. O único exemplar encontrado não tem assinatura.
Só, numa pequena folha apensa e apagada, podia ler-se, em rabisco apressado, o nome Manuel Tiago, pseudónimo de certeza.

Foram consultadas pessoas que poderiam dar eventualmente indicações conduzindo a uma identificação. Sem resultado. O autor fica assim merecendo o título de “homem sem nome”, tal como as personagens do romance.»

Só depois da queda da ditadura se desvendou o mistério e se identificou o autor, como sendo Álvaro Cunhal, a figura mais carismática do PCP que foi durante muitos anos Secretário-Geral do seu partido.

O romance Até amanhã, Camaradas é, antes de mais nada, um documento histórico da resistência portuguesa contra a ditadura.

O núcleo fundador desta narrativa é, porém, a vida interna do PCP.

Centra-se, sobretudo, nos militantes clandestinos e nos seus problemas políticos, de segurança, de comunicação com as bases, além das vivências pessoais, quer sentimentais, quer de sobrevivência e de relacionamento com os camaradas e com o exterior.

A acção passa-se nos anos difíceis da Segunda Guerra Mundial e durante as lutas populares que o PCP organizava no Vale de Tejo por volta de 1944.

Inicia-se com a chegada de um jovem, de bicicleta, num dia de chuva torrencial, a uma aldeia recôndita, procurando um tal Manuel Rato. Ele é, segundo se apresenta, o sapateiro de Santarém que, passando caminhos esconsos e lamacentos, subindo e descendo vales, prossegue a viagem, apesar da intempérie.

Encontrando Manuel Rato, mostra-lhe a senha (um pedaço de papel com o desenho de uma planta de sapato) a que se iria ligar a outra metade que Manuel Rato também possuía, confirmando assim a sua autenticidade.

Eles falam da pobreza da aldeia, da falta de trabalho, da exploração dos camponeses, dizendo-lhe Manuel Rato que, em breve, iria trabalhar para as minas.

Depois de sua mulher lhe oferecer um caldo quente com hortaliças e uma broa com toucinho, passaram parte da noite a conversar. Manuel Rato, a mulher e Joana, a filha, que, apesar de muito novinha se interessava por tudo e queria ouvir histórias sobre a União Soviética e sobre o trabalho que estavam a realizar.

Mas este jovem, de rosto duro e enérgico, tem de prosseguir a sua longa caminhada em busca de outros camaradas a fim de criar a ligação entre este sector e a organização.

A chuva persegue-o e é molhado até aos ossos que chega a uma taberna, numa povoação vizinha, onde pede um quarto de pão, um queijo fresco e um copo de vinho.

Em seguida, ele parte para a cidade onde irá ter lugar uma reunião do Comité Regional, na qual se discutirá sobre as praças de jornas, em que os trabalhadores eram contratados. Uns consideravam que deviam pôr fim a esses vestígios de servidão, onde os patrões e manajeiros ofereciam jornas «como quem oferece numa feira o preço do gado.»

Mas a ordem do Comité Central, veiculada por Vaz, o rapaz da bicicleta, era continuar as praças, porque aí estavam todos juntos e podiam fazer o seu preço. Enquanto que se estivessem separados, a exploração sobre eles individualmente seria maior. Marques, que estivera contra esta decisão, enfrentando o olhar fixo de Vaz, disse-lhe:

“Os Camaradas do Comité Central estão lá muito, muito em cima e nem sempre são informados”.

Uma hora mais tarde, já Vaz se encontrava a léguas de distância, sentado no escritório de um camarada advogado. Vaz encontrava-se muito cansado e o advogado insistia na crítica ao trabalho do Partido, ao jornal que considerava pobre, sem artigos de divulgação doutrinária e, por vezes, com erros.

E quando Vaz lhe pergunta se ele tinha elementos sobre o caso das negociatas do Governador Civil com a Câmara, ele responde com evasivas, que era um caso muito delicado.

Também se esquecera de comprar o Diário do Governo, conforme lhe tinha sido pedido.

Depois, à pergunta se poderia dormir ali no seu escritório ou na casa dele, o advogado fica muito agitado e acaba por dizer que era muito perigoso ficar ali e que, em casa, a sua família era muito burguesa e não compreenderia aquela intromissão.

Vaz parte e, por momentos, vem-lhe à memória a família modesta de Manuel Rato, recebendo-o naquela casa pobre, no entanto, com tanto carinho. E é neste clima, por vezes, mesmo de desconfiança entre os camaradas, de vidas projectadas para a clandestinidade, onde os esperaria uma vivência muito dura, de sobressalto em sobressalto, de privações de toda a ordem, até de comida, que se desenrola a acção.

Vaz faz-se à rua debaixo de chuva. Já era tarde e não podia ir procurar uma pensão que despertaria suspeitas. Nessa semana passara já duas noites em branco, fizera centenas de quilómetros de bicicleta, andara léguas e léguas a pé, comendo apenas uma pequena refeição por dia. Agora abrigava-se debaixo dum aqueduto, o chão era um charco e o frio penetrava-lhe no corpo. Só de manhãzinha, tiritando de frio e de fraqueza fora procurar outro camarada, o Pereira.

A casa dos Pereiras tornara-se primeiro um “ponto de apoio” do aparelho clandestino e, depois, quando Pereira se tornou responsável da organização local, o ponto de ligação dos controleiros com a organização.

Aí vai encontrar a comida quente de que necessitava, uma cama e o calor humano.

Destes episódios ficamos a conhecer a vida dos controleiros, andando quilómetros a pé ou de bicicleta, passando dias sem dormir e quase sem comer. Somos igualmente espectadores da vida de privações dos camponeses e dos operários que vão ter o apoio do partido nas suas reivindicações. No meio do romance, o PCP lidera greves e manifestações que apanham as autoridades desprevenidas, mas logo seguidas de brutal repressão que conduz os protagonistas à prisão e mesmo à morte. É o caso da filha de um militante que, numa greve, se coloca à frente do pai para o proteger da brutalidade da polícia que lhe está a bater e é morta por uma bala do agente.

E, quase no final da obra, a morte a tiro de um dos militantes mais activos.

As três personagens que mais se evidenciam neste romance são Vaz, Ramos e Maria. Pela faceta austera de Vaz, tem-se considerado que será uma identificação desta personagem com Álvaro Cunhal, embora muitas das características de Ramos sejam também compatíveis com a personalidade do autor.

Até amanhã, Camaradas tornou-se através destes anos uma epopeia do PCP, onde o passado épico eleva a heróis os seus militantes, protagonistas da acção do romance.

Esta obra foi transposta para o cinema numa série que a SIC reproduziu em dois episódios de uma forma magistral. O romance encerra, com efeito, qualidades a nível dos planos da acção e do seu dinamismo que se adaptam à técnica cinematográfica.

A dramaticidade dos acontecimentos e o carácter épico e ético conferem a esta obra a qualidade artística e humana que é o produto de um autor que dedicou toda a sua vida a um ideal, sem equívocos ou incoerências.

Elsa Rodrigues dos Santos

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