15 outubro 2010

Adalberto Alves - No Vértice da Noite

Diz Adalberto Alves no prefácio: «A minha modesta obra poética busca uma tendência substantiva: limita-se a questionar incessantemente o ser».

Quase a terminar o livro, a servir de epígrafe aos Oito Sonetos, em jeito de conclusão, o poeta afirma:

«Olhando o tempo
é que me sou
e, por nele estar,
acabo e passo»

Confronta-se o ser com o tempo, não actuando este como predestinação, mas como algo que se vai realizando pelo próprio agente poético.

Situando-se nas três dimensões do tempo, é com o presente ou com os vários presentes que o poeta vai escrevendo a vida: «Só existe o presente/ aonde vou./ O antes e o depois / eu próprio os faço.».

Deste modo, entre o antes e o depois, o poeta preenche essa dimensão temporal com vários espaços, sentimentos, vocações, saberes e igualmente dores e desilusões.


«Homem nascido e vivido no Ocidente, interiormente vivencio o Oriente», diz o poeta. O Oriente bramânico, hinduísta, islâmico, como diria Pessoa, moldou-lhe a sensibilidade e a filosofia do estar e até a estética da escrita. Por isso, o Agente Poético sente-se distanciado do espírito da terra onde vive, nos nossos dias, por este se pautar por um materialismo, um mediatismo que conduzem a uma cultura medíocre, sem profundidade, sem interioridade na qual ele não se revê, por isso, nela não se reconhece e, porque não a segue, paga o ónus de não ser reconhecido.

Daí interrogar-se sobre a sua própria essência, como sobre a essência das coisas, meditando na relação ontológica com a linguagem.

Aliás, quase todo o seu prefácio é uma reflexão sobre o discurso poético defendido nos dias de hoje. E cito algumas considerações:

«O processo poético é frequentemente descrito como desconstrução da linguagem. (…) É de pensar-se, por isso, que aqueles que erigem como matriz estética, por excelência da modernidade poética, a desconstrução da linguagem, não estão afinal, no desenvolvimento da sua oficina poética a proceder a desconstrução alguma. E isto porque partem de um suporte, por essência, desconstructo: trabalha-se, assim, de modo inconsciente, numa mera tentativa de reconstrução.»

Adalberto Alves, revelando-se céptico em relação a esse processo da desconstrução da linguagem, cumpre a sua modernidade, antes através da sua transfiguração, o que é bem diferente. E se a linguagem é a roupagem do ser, tal como formula Heidegger, Adalberto Alves renasce na sua poesia, configurando-a, não apenas naquilo que ele chama de «tendência substantiva», «usando minimalmente um aparato de atributos adjectivamente traduzíveis», segundo palavras suas, mas expressando-a na subtileza, na sugestão da imagem, elaborando a estética do texto, definidora de um comportamento ético. Jogo de espelhos, vida ligando-se aos próprios desígnios do fenómeno literário, traduzindo o pensamento de Nietzsche quando este afirma que «só como fenómeno estético nos é possível justificar que o mundo exista eternamente» (in Origem da Tragédia)

Outra das vertentes da sua poesia, como já foi referido, é o fascínio pelo Oriente, captando dele o pensamento e a estética, pois a civilização ocidental parece ter esquecido o indivíduo, fruto das suas tradições, do seu passado.

Em Oriente de mim, publicado em 1992, o poeta vai igualmente em busca do seu «eu» para lá onde o sol se põe. E, voltando a referir Heidegger, este, ao aprofundar a razão ocidental como um todo, imputa-lhe a responsabilidade pelo «esquecimento do ser», logo no momento inaugural, na filosofia platónica.

Pode concluir-se em Oriente de mim que o poeta busca ir mais além de si, no encontro com as raízes, nessa amálgama de vestígios culturais deixados pelos povos que connosco conviveram, árabes, chineses, africanos, indianos. Em resumo, o poeta procura um encontro com as mais diversas raças, ou melhor, com o repositório cultural que formou e informou o imaginário colectivo português e que a ele pessoalmente o tocou.

Já o fizera antes nos livros O Meu Coração é Árabe, em Arabesco e em As Sandálias do Mestre, que constituem reflexões profundas sobre o nosso «eu» colectivo, cujas raízes estão indelevelmente ligadas ao mundo islâmico e que fazem repensar a nossa portugalidade.

Em O meu coração é árabe, o encontro com o Islão é feito através da poesia de cerca de quarenta poetas árabes que viveram no nosso território dos sécs. X ao XIII, período da maturidade da poesia hispano-árabe.

Arabesco complementa o livro anterior, detendo-se já não na poesia, embora encontre nela vários referentes, mas na História da Música, principalmente nos aspectos que unem a nossa civilização à civilização árabe, indo em busca dos vestígios deixados na música do nosso povo.

Em As Sandálias doMestre, o leitor poderá colher os ensinamentos de Ibn Qasi, místico sufi, que reflectem toda a espiritualidade e transcendência e igualmente os valores éticos da filosofia islâmica.

Em O Vértice da Noite, o Oriente pressente-se através do estilo, ora pela opulência da imagem e a subtileza da palavra, ora por uma escrita despojada de qualificativos, poemas curtos lembrando os «akai» orientais, usando da sua «tendência substantiva», conforme ele próprio o diz. Exemplifico:


«remota é a Vida
e, no entanto, nos habita.
Seremos nós distantes do lar
Só por sermos cegos?»

Ou noutro poema:

«Somos pés em caminhada
de rastos frustres e funestos
desprezamos a fome com os restos.»

Ou ainda:


« As folhas secas
são só sonhos cansados,
a ilusão do tempo
piedosamente as fez adormecer.»


Neste percurso para a perfeição que o poeta deseja encontrar, quer ao nível poético, quer ao nível do ser, emerge a sua religiosidade:



«Silente carícia de uma ignota mão
que marcas nas faces o signo da lua
abre-me a alma, fecha-me a razão
dá-me aquela Presença que é só Tua.»

No poema «A Lágrima», analisa a fragilidade humana através do olhar do Criador, crítico e doloroso:

«Tomou-se o Criador de nostalgia,
pesou a Criação
mediu o Bem, o Mal e o dia.

Baixou o olhar
Sobre bancos, máquinas,
Fomes e guerras
E viu o grande circo
Montado na praça principal
(…)
onde, pensou o Criador,
onde está o homem?»

A dimensão ética do poema está implícita na crítica à ausência de humanidade nos interesses da banca, nos poderes que levam às guerras onde se ceifam milhares de vidas sem problemas de consciência, às máquinas mortíferas que dão grandes lucros. Por isso, ele termina o poema, interrogando:

«onde, pensou o Criador,
onde está o homem?»


O fascínio pela cultura árabe manifesta-se igualmente pelo apreço pelos grandes mestres que foram poetas e filósofos.

O autor escreve o poema «As últimas palavras do Mestre» em homenagem a Ibn Qasi, natural de Silves, um místico sufi do sec. XII que reinou o Sul de Portugal, mas tendo feito uma aliança com D. Afonso Henriques, foi capturado pelo exército almôada, que não lhe perdoou a aliança com o rei português, acabando por ser decapitado.

Como já foi referido, a esta grande figura da cultura islâmica, Adalberto Alves dedicou-lhe o livro, As Sandálias do Mestre, por considerar Ibn Qasi um elo importante para a formação da civilização portuguesa.

No poema referido, «As Últimas palavras do Mestre, o sujeito poético assume-se como o próprio Ibn Qasi que declara:

«do meu pescoço degolado
serei eu o algoz e vós as vítimas.

Deixai que cada pingo do meu sangue
Seja pérola de um colar que se rompeu
Para que em cada canto rescendessem flores.»

É com uma grande mágoa que se dirige aos que o traíram com palavras nas quais se evidencia a filosofia sufi que defendeu junto dos seus neófitos: o esoterismo, a doutrina da gnose e do êxtase, a prática da oração, do jejum e da esmola, uma doutrina da abnegação e da união com Deus:



«ignaras gentes do meu povo/ sois reverso da sabedoria/ viveis emparelhadas como noite e dia/ (…) meus sinais não vos disseram nada?/ A minha loucura não vos pareceu sagrada?/ oh é doce o veneno da mentira/ e breve o profeta na terra onde nasceu».


E é num total despojamento dos bens da terra, restando-lhe apenas a essência do homem, que ele termina:

«que o Criador vos traga alento
do seu trono imenso que sustenta o mundo
A mim, uma tâmara de ser,
Uma só me matará a fome»

Neste percurso em que a sua escrita é a procura espiritual, viagem em busca da perfeição, da transcendência, Adalberto Alves vai ao encontro dos poetas que mais o marcaram, traduzindo-os para a sua língua e imprimindo-lhes o seu próprio estilo, fruto de outros estilos ancestrais e vários.

A esse capítulo lhe dá o título de «Transcri(a)ções», porque não se tratam de meras traduções, mas de versões, ou melhor, de recriações.

Inclui nelas escritores europeus (Cummings, Lovecraft, Rudyard Kipling), e escritores árabes como Ibn Zydun, e Ibn Arabi, considerados os maiores filósofos místicos do Islão e os poetas persas Omar Khayyam, astrónomo, matemático, filósofo, poeta e gnóstico, o sufi Djalal é-DinRûmi, Sa’adi, um dos maiores poetas pedagogos da Pérsia e Hafiz, considerado por muitos como o maior poeta lírico do seu país.

Todos estes poetas cantaram, segundo as suas convicções religiosas, a passagem da ascese à mística, do esforço pela perfeição ao sentimento íntimo de Deus.

Ibn Arabi, cujas ideias foram posteriormente muito influenciadas pelas místicas e filosofias do Oriente por onde andou, deixando uma obra no nosso território, que constituiria um dos fundamentos da filosofia portuguesa.

Ibn Arabi foi a grande figura do sec.XII, no campo do pensamento sufítico, dominando todo o seu século, diríamos mesmo, toda a civilização muçulmana medieval.

Ora neste trabalho de tradução, sobretudo dos escritores orientais, Adalberto Alves transfere esse poder encantatório que têm as palavras em árabe ou em persa (valendo, por vezes, o poema só por isso) para a língua portuguesa, explorando as virtualidades da nossa língua, não só no ritmo, como na riqueza da palavra, não procurando apenas o equivalente nacional, mas conjugando a ancestralidade e a musicalidade dos poemas árabes ou persas com a moderna concepção estético-linguística. Nunca se afastando do conteúdo e do seu carácter metafísico e aproveitando a riqueza das imagens dos poemas originais, utiliza com arte o tom arcaizante do português e as palavras evocadoras das grandes civilizações do Oriente.

Este é o seu processo literário que culminou com o seu recente livro Irão Viagem ao País das Rosas, numa evocação esplendorosa sobre a sua viagem ao Irão em busca da Pérsia mítica e mística, que o povoava desde a juventude, e da qual não são alheias as raízes da nossa identidade que se reportam aos Alanos, povo persa que invadiu o território da Lusitânia.

Desse encontro com o país das flores e de um povo acolhedor, amante dos seus poetas e da sua cultura, resultou um livro magnífico não só pela beleza dos poemas dedicados às cidades e aos locais mais belos deste país como Shiraz, a mais poética de todas as cidades do Irão, Saadat-Shahr, a cidade da felicidade, Yazd, a esmeralda, pela sua verdura, situada no deserto, Teerão, hoje a capital, rodeada de montanhas nevadas, a célebre Pasárgada de Manuel Bandeira, que constituem ruínas ainda por explorar, Isfahan, a pérola do mundo, tão cantada nas Mil e Uma Noites, com as suas 210 mesquitas cor turquesa, e os templos cristãos, como a Catedral e a Igreja de Belém, e muitas outras cidades de sonho e de maravilha. Poemas que são também evocadores da espiritualidade do seu povo através dos seus grandes poetas, santos e sufis, como Hafiz, Rudaki, , Saadi, Omar Khayyam, Attar,Rumi, figuras imortais da Pérsia Antiga.

Esta obra tem belíssimas ilustrações de Isabel Maria Ferreira e o mesmo cuidado e bom gosto se verificam em O Vértice da Noite, com as aguarelas de Figueiredo Sobral que vêm enriquecer e recriar a ambiência espiritual, transformando este livro num belo artefacto.

Elsa Rodrigues dos Santos


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