20 outubro 2010

João Paulo Borges Coelho - O Olho de Hertzog

João Paulo Borges Coelho é hoje considerado um dos escritores moçambicanos mais conceituados, embora tenha nascido, em 1955, em Portugal, no Porto, donde partiu ainda criança para Moçambique, onde hoje vive e trabalha.
Foi galardoado com o Prémio José Craveirinha - o mais importante prémio literário moçambicano, atribuído ao seu romance As Visitas do Dr. Valdez, em 2004.
Publicou mais quatro romances:
As  Duas Sombras do Rio, 2003
Crónica da Rua 513.2, 2005
Campo de Trânsito, 2007
  
Publicou ainda dois volumes de estórias da série «Índicos Indícios», em 2005 , Setentrião e  Meridião  e uma novela, Hinyambaan, em 2008.
João Paulo Borges Coelho é também um reconhecido historiador, Professor de História Contemporânea na Universidade Eduardo Mondlane em Maputo e com inúmeros trabalhos publicados na área da História Política da África Austral.



João Paulo Borges Coelho
O Olho de Hertzog
(Prémio Leya/2009)

A obra abre com as seguintes palavras:
«Muitos actos que adiante se relatam foram reais, embora se suspeite que a realidade não passa de uma massa de contornos imprecisos. Quanto a quem os praticou, reais ou não, são, parafraseando Durrell- animais que não existem.»
Há ainda duas epígrafes que funcionam como algo que ilustra a narrativa que se segue e que põem em evidência que os factos que se relatam não aconteceram, mas são tão reais que poderiam ter acontecido.
Hans Mahrenholz é uma das personagens principais que chega a Moçambique, mais concretamente à cidade de Lourenço-Marques, vindo da cidade do Porto, numa velha galera, a Ferreira, que outrora tivera o nome de Cutty Sark e que faz a sua última viagem até à capital de Moçambique.
Hans lembra-se do Comandante Vieira de Sousa, que comandava este barco que, antes de desembarcarem, ia explicando aos cinco passageiros da galera o historial de cada um dos navios ali fundeados. Um deles, o Beira, nome pintado de fresco por cima de outro nome, que ainda se conseguia ler, Herzog ou Hertzog, e sobre o qual se distinguiam as armas com as cores amarela, azul e negro, três estrelas, um elmo guerreiro e as asas imperiais. Estes símbolos trazem-lhe à memória «um outro tempo que vai ter de convocar» ou, melhor dito, vai ter de recuperar.
Hans desembarca e, levando de arrasto o malão, vai em busca de uma morada.
O que procura Hans Mahrenholz, um oficial alemão que se faz passar por Henry Miller, empresário e jornalista inglês, nas ruas de Lourenço-Marques, numa época ainda debilitada, no pós-guerra, anos depois da Segunda Guerra Mundial?
Mas a história começa a relatar factos anteriores à chegada de Hans à capital de Moçambique. Na estrutura do romance, abre-se uma analepse, isto é, um recuo no tempo da acção até1919, quando esta personagem, Hans, chega ao Norte de Moçambique num zepelim e é largado de pára-quedas, sozinho, em plena selva, com a missão de se juntar ao contingente do General Lettow. Encontra-o, mas todo o resto da campanha militar é assombrado pela estação das chuvas, a floresta virgem, a malária e os confrontos com o exército inglês e português. Quando chega a Lourenço-Marques, nos anos 50, ele já não é o herói ingénuo e idealista que se juntara a Lettow . É antes uma figura ambígua com uma missão misteriosa.
Após a sua chegada, foi seu propósito imediato procurar o Sr. João Albasini.
Aqui o escritor introduz uma personagem da vida real. João Albasini é um jornalista e contista do princípio do sec. XX que, em 1925, publica O Livro da Dor, que é constituído por contos, crónicas e reflexões, documento importante sob o ponto de vista histórico. Aliás, não só João Albasini, mas também o seu irmão José Albasini, ficaram célebres porque , na imprensa da época, sobretudo no Brado Africano , jornal que existiu entre 55 a 58, se pronunciaram severamente contra a máquina oficial colonialista.
É esta personagem, real e figura conhecida na história literária e jornalística de Moçambique que o autor coloca nesta obra de ficção com um papel relevante. Ele é descrito sendo um homem mestiço, entroncado, quase gordo. Está sentado à sua mesa de trabalho e concentrado nos papéis. Usa umas mangas de alpaca e um chapéu de feltro caído para a nuca. Hans entra no seu gabinete , perguntando por ele e apresentando-se como Henry Miller.    
Albasini desculpa-se por não o ter ido esperar, mas perdera-se na escrita de um artigo urgente para o editorial do Brado Africano.
Há, pois, um entrosamento da ficção com a realidade. Inclusivamente Albasini mostra-lhe parte do artigo que estava a escrever é também real. Ele inicia-se desta maneira:
«Todo aquele que não luta pelo seus direitos condena-se voluntariamente a ser capacho de outros. (…)  Para os povos subjugados, então, mais do que para outros, esse dever é uma religião» Termina este texto afirmando: «Vamos seguir a mesmíssima senda que encetámos ao fundar O Africano, em 1908»
Distanciam-se estes jornais em 47 anos, pois o Brado Africano foi fundado em 55 e terminou em 58.
Ora a acção central deste romance passa-se no rescaldo da 2ª Guerra Mundial, isto é, 10 anos depois do seu final, por volta de de 55.
João Albasini leva Hans, ou Henry Miller ao Hotel Clube, pedindo ao paquete,  Obed, que leve o malão até lá.  No caminho, Albasini vai relatando ao visitante querelas municipais, intrigas, certas minudências, até chegarem ao mercado municipal . Recria-se o ambiente do mercado, como o das ruas, com referências detalhadas sobre os edifícios com os seus letreiros, o velho Teatro Varietá, a Papelaria Minerva, a Farmácia Central, a Rua Araújo, referências que estão ainda na memória de todos os que lá viveram.
Mas Hans tem um plano, uma missão determinada muitos anos antes quando estivera ao serviço do General Lettow. Essa missão secreta que ele empreendera nessa altura e que fora o envio , por meios aéreos, de armamento, medicamentos para as forças de Lettow-Vorbeck, na África Oriental,  fora abortada pela queda do dirigível que acabou por explodir no voo experimental. Noutro voo, carregado de medicamentos, metralhadoras, munições e víveres europeus, e toda a espécie de ferramentas de engenharia militar, quando sobrevoava a Anatólia, a tripulação fora surpreendida  por uma forte tempestade que pôs em risco as vidas de todos os que aí se encontravam.
Então falou-se no olho de Hertzog, um diamante mágico e mítico, valioso pelo mistério que encerrava, qualquer coisa que poderia mudar a vida de um povo e que estaria em terras de Moçambique.. Hans , desde então, determina dedicar a sua vida em busca deste diamante, não pelo valor material, mas por  um outro valor, qualquer coisa de transcendente, como a busca de um destino indecifrável..
Será que Hans poderá um dia encontrá-lo? Será que alguém o possui? E que poderes tem esse olho de Hertzog?
O relato de acontecimentos durante as duas guerras mundiais, a contextualização do pós-guerra em Moçambique revelam um autor historiador, mas, ao nível, da estrutura do romance, há outra vertente, a do romancista que se aproxima da técnica da narrativa policial. Não de um policial como estamos habituados a ler, mas com uma trama, sem detectives, nem crimes nem criminosos, que se vai desenvolvendo como um «puzzle» e que o próprio leitor terá de desvendar, porque misteriosos são os indícios.
Configuram-se personagens de uma grande densidade, todas elas em busca de um qualquer olho de Hertzog, e desenham-se as acções que atestam, pela sua complexidade, o notável escritor que domina a língua e a arte de narrar.
A acção fica em aberto, não se clarificando os enigmas, mas deixando ao leitor a tarefa de criar as suas próprias conclusões.
Hans vem em busca desse tal diamante que é uma espécie de Santo Graal que simboliza a identidade moçambicana, um destino por descobrir.

            Elsa Rodrigues dos Santos

Sem comentários: